21 outubro 2022

A epistemologia da néscionaria e as cinco leis fundamentais da estupidez

 Por Rui Badaró, V.M. da Justa e Perfeita Loja de São João, 680. GLESP. Primeira parte: A epistemologia dos néscios Em seu livro “Discurso da estupidez”, Mauro Mendes Dias brinda o leitor com um verdadeiro manual para aprender a captar as estultices e esclarece que a estupidez não é autoengendrada, vez que, de um lado, ela não é sem causa e, de outro, mantém relação com o tipo de ação da verdade que emerge parcialmente nela. Mas qual verdade? Aquela que metamorfoseia em certeza. Como uma aparição do além-túmulo, ela nos faz lembrar a função que cumpre o fantasma do pai morto para Hamlet, no início da peça de Shakespeare. Assim, na maçonaria, tendo o irmão se ensurdecido para qualquer tipo de dúvida ou objeção, deixa-se conduzir por uma missão que clama por vingança. Diferentemente do gesto de Ulisses na Odisseia, o tapar de ouvidos aqui é condição para o sucesso de viagem em direção às rochas da estupidez, as quais não provocam a morte dos passageiros, mas sim a sua proliferação. A estupidez não precisa de teste, verificação e fundamento. Olhando em volta, vê-se coisas que se enquadram nessa “epistemologia da estultice”, como irmãos acreditando que, por meio da cadeia de união, curam-se doenças – basta enviar as vibrações energéticas. Bom, de qualquer modo, a estultice não está em quem prega — isso é malandragem —, e, sim, está em quem acredita. Claro que esse fenômeno é também uma metáfora da sociedade. Também há outros bons exemplos como o conteúdo do “Breviário maçônico de Rizzardo Da Camino”, que induz irmãos a embarcarem no senso comum de que, afinal, sendo o autor irmão, grau 33 do REAA, “jurista” e profundo conhecedor da fraternidade, não há que se refletir sobre aquilo que por ele foi escrito. Basta ler, crer e dogmatizar. Cogito, ergo estupidus. Aliás, tudo por meio do subjetivismo, do emotivismo, da nossa metaética que é mais meta do que ética — sem epistemologia — esculpida em carrara: o critério de objetividade, na maçonaria, a maioria das vezes, é aquilo que o irmão (estúpido) quer que seja. Eis o busílis nos tempos atuais. Se o irmão não gosta do discurso, monta outra Loja, se discorda da postura da potência, cria-se outra. E assim, a néscionaria multiplica-se exponencialmente num fértil ambiente onde a profundidade do debate não ultrapassa o tamanho das pernas de uma formiga anã. Segunda parte: O negacionismo maçônico e as cinco leis da estupidez comentadas artigo por artigo Tratemos do negacionismo e da epistemologia da estupidez na maçonaria, ou seja, da néscionaria. O interessante é que não há uma fraternidade dos estultos, ao menos não formalmente. O que parece, sim, é haver uma mão invisível que os organiza, como lembra Carlo Cipolla, no livro Allegro, ma non tropo, uma sátira sobre a estupidez. A mão invisível da néscionaria. Cipolla nos brinda com uma epistemologia dos néscios (a expressão é do estimado Prof. Lenio Streck), mostrando as cinco leis fundamentais, que agora adapta-se para a maçonaria: 

1. Sempre e inevitavelmente, cada um de nós subestima o número de irmãos estúpidos que circulam pela fraternidade maçônica. Com efeito, ao ver maçons valendo-se do Whatsapp, YouTube, Tiktok e quejandos para compreender os objetivos da maçonaria e irmãos “ensinando” história e filosofia maçônica sem sequer terem conhecimento e formação nas disciplinas e, pior, outros irmãos estudando a fraternidade por breviários, resumos, resuminhos, esquemas ou limitando-se às apresentações pobres de Powerpoint que pipocam em todos os ambientes virtuais para explicar a importância e finalidade da maçonaria. Essa primeira lei passa pela CHS (condição hermenêutica de sentido) e está demonstrada todo dia. Quod erat demonstrandum constante. 

2. A probabilidade de que uma determinada pessoa iniciada na maçonaria seja estúpida é independente de qualquer outra característica da mesma pessoa. De fato, essa segunda lei também é verificável, já que nos diversos graus da maçonaria, a distribuição do “IE—índice de estupidez” é quase igual. Nesta época pós-pandemia isso fica mais visível. Basta uma olhada rápida no mundo das lives maçônicas. Todo mundo virou “artista/professor”, com o que todos os gatos se tornaram pardos. Interessante é que a febre das lives é mais visível em algumas áreas, dentre elas, a maçonaria. Por que será? Daqui a pouco, teremos uma grande live maçônica sobre lives maçônicas—e ninguém a assistirá, pois estarão todos os irmãos gravando uma live maçônica. A Grundlive maçônica. Grupos de whatsapp sobre maçonaria não escapam dessa fenomenologia. As neocavernas desafiam o desgosto de Platão. 

3. Um irmão estúpido — mormente se tiver atingido o mestrado maçônico (porque são muitos)—é aquele que causa dano a outro irmão ou Loja sem, ao mesmo tempo, obter um benefício para si mesmo ou mesmo causar prejuízo. Perfeito. Cipolla não considerou a estupidez como uma questão de quociente intelectual, mas sim uma falta de inteligência relacional. Ele parte da ideia de que, ao nos relacionarmos uns com os outros, podemos obter benefícios e proporcionar benefícios aos outros ou, pelo contrário, podemos causar danos ou prejudicar os outros. Mas na Maçonaria não é assim. Um irmão estúpido é aquele que prejudica os outros e muitas vezes também ele mesmo. Basta ver nas redes sociais. Se você posta algo sofisticado, o irmão estúpido (mormente o mestre maçom) vem e faz como o pombo no jogo de xadrez: esculhamba as pedras e faz cocô no tablado. E sai dizendo que venceu. De peito estufado. Orgulhoso de sua vencedora estupidez. Por que um néscio quer esculhambar o discurso que ele não entende ou nunca se esforçou para entender? Por que ele só usa livros resumidinhos e resumos dos resumos? Ou seja, está comprovada a terceira lei: o néscio não se importa com soma zero. Segundo Cipolla, há ainda o supernéscio: aquele que esculhamba os nãonéscios e ainda se prejudica, sendo processado pelo que postou. Ou seja, só prejuízo. 

4. Maçons não-estúpidos sempre subestimam o potencial prejudicial de estúpidos. Essa quarta lei de Cipolla é autoexplicativa. Por vezes, eles atacam à socapa e à sorrelfa. E nem é possível reagir. Estupefatos com a estupidez dos irmãos estúpidos. 

5. O irmão estúpido (ou néscio) é o mais perigoso. Por último, a quinta lei é autoaplicável. Como diz Cipolla, “Todos os seres humanos estão incluídos em quatro categorias fundamentais: o desavisado, o inteligente, o malvado (ou ladrão) e o estúpido. De onde: (i) A pessoa inteligente sabe que é inteligente; (ii) o malvado está ciente de que ele é mau; (iii) o desavisado é dolorosamente imbuído do senso de sua própria sinceridade e, (iv) ao contrário de todos esses personagens, o estúpido não sabe que é estúpido. Ele não sabe que não sabe. Como acentua Cipolla e Streck, isso de não saber que não sabe contribui para dar maior força, incidência e eficácia à sua ação devastadora. Aqueles que sabem que não sabem estão perdidos, entre todos aqueles que acham que sabem que sabem, aqueles que sabem que não sabem mas fazem mesmo assim— razão cínica—e aqueles que não sabem que não sabem e não querem saber que não sabem tudo aquilo que não sabem e nem querem saber. Enfim, eis a adaptação das 05 leis fundamentais da estupidez humana de Cipolla. Que sirvam de estímulo para compreensão do estado da arte maçônica e permita a criação de um ambiente de reflexão para combater a néscionaria, uma de suas principais mazelas. Adiante! 

29 agosto 2022

Loja Mestre Affonso Domingues - 32 anos

 


Loja Mestre Affonso Domingues foi fundada, ainda antes da formal constituição da Grande Loja Regular de Portugal (GLRP), hoje Grande Loja Legal de Portugal/GLRP, como loja pertencente ao Distrito de Portugal da Grande Loge Nationale Française (GLNF). Foi, na ordem de numeração desse Distrito, ulteriormente mantida na ordem de numeração da GLLP/GLRP, a Loja n.º 5, com a sua criação contemporânea das quatro que a precedem nessa Ordem: Fernando Pessoa, n.º 1, Porto do Graal, n.º2, Europa, n.º 3, e General Gomes Freire de Andrade, n.º 4. Todas agruparam maçons que, oriundos do Grande Oriente Lusitano (GOL), Obediência que se integra na corrente liberal da Maçonaria, desejavam refundar a Maçonaria Regular em Portugal.


A data de constituição oficial da Loja Mestre Affonso Domingues, enquanto Loja nº 5 da GLLP/GLRP é coincidente com a data da fundação da Grande Loja Regular de Portugal, hoje Grande Loja Legal de Portugal/GLRP, em 29 de junho de 1991.


No entanto, o verdadeiro ano da fundação da Loja Mestre Affonso Domingues é o de 1990 e a data da sua fundação antecede a da grande Loja precisamente em 364 dias. Com efeito, a carta-patente da Loja foi emitida, pelo então Grão-Mestre da Grande Loge Nationale Française (
GLNF), André Roux, em 30 de Junho de 1990, ainda no âmbito do Distrito de Portugal daquela Grande Loja. 30 de Junho é, assim, a data de aniversário da Loja. Recorde-se que a reinstituição da Regularidade Maçónica em Portugal processou-se através de criação de várias Lojas sob os auspícios da GLNF, que constituíram o Distrito de Portugal daquela Obediência Regular e que, ulteriormente, obtiveram a consagração da Grande Loja Regular de Portugal, hoje Grande Loja Legal de Portugal/GLRP.


Foram designados para exercer, em primeiro lugar, os ofícios de Venerável Mestre, 1.º Vigilante e 2.º Vigilante, respetivamente, os Irmãos EM, HPV e JCC. Na lista dos fundadores da Loja  incluem-se, nada mais, nada menos, os que vieram a ser os três primeiros Grão-Mestres da GLLP/GLRP: Fernando Teixeira, Luís Nandin de Carvalho e José Manuel Anes!

 

HPV durante algum tempo teve se cumprir outras tarefas necessárias à Grande Loja, noutras Lojas da Obediência. Mas sempre regularmente visitou a nossa Loja, que fundou, e, felizmente, está agora entre nós, como obreiro e Antigo Venerável da Loja. É o mais antigo de nós e que assim permaneça tanto tempo quando o Grande Arquiteto o permitir!

 

A nossa Loja, não sendo melhor nem pior do que as demais Lojas da GLLP/GLRP, ao longo dos 32 anos já decorridos tem sido sempre um esteio da Obediência em que se insere.

 

Foi-o nos primeiros tempos em que, por Decreto do Grão-Mestre Fundador, teve, durante algum tempo, o quase exclusivo de iniciar, passar a Companheiro e elevar a Mestre (para além dela, só o próprio Grão-Mestre e a Grande Loja o podiam fazer). Assim, virtualmente durante cerca de dois anos, quase todos os Maçons da Obediência foram iniciados por Oficiais da Loja Mestre Affonso Domingues.

 

Foi-o novamente aquando dos dolorosos tempos da cisão de 1996/1997, na sequência do golpe da Casa do Sino!


De um dia para o outro, a Loja ficou sem instalações, ocupadas pelos golpistas, com recurso a seguranças armados, foi pressionada a aderir ao golpe, por uns, e instada a permanecer leal ao Grão-Mestre eleito, por outros. Todos, na Loja e fora dela, de um lado e do outro, rapidamente se apercebem que a opção que a Loja Mestre Affonso Domingues tomasse teria todas as condições para ser determinante na opção de outras Lojas e muitos outros obreiros, pois a esmagadora maioria dos obreiros da Grande Loja fora iniciada pela Loja Mestre Affonso Domingues, os seus elementos ajudaram a consagrar muitas Lojas, de Norte a Sul, do Litoral ao Interior. A influência da Loja Mestre Affonso Domingues podia ser determinante para o sucesso da cisão ou para o suporte do Grão-Mestre eleito e então contestado.


Na ocasião, a Loja reuniu com todos os seus elementos. Atenta a importância da decisão, definiu que a sua deliberação, após o necessário debate, seria tomada segundo o princípio “um homem, um voto”, não fazendo distinções entre Mestres, Companheiros e Aprendizes. A primeira deliberação tomada foi que só havia e só haveria uma Loja Mestre Affonso Domingues, ficasse leal ao Grão-Mestre eleito ou acompanhasse a cisão. Todos se comprometeram a que, quem ficasse em minoria, tendo obviamente o direito de seguir o caminho que entendesse, renunciava a criar ou cooperar na criação de uma Loja Mestre Affonso Domingues alternativa à original, à verdadeira, à única Loja Mestre Affonso Domingues. E logo ficou também assente que, quem se afastasse, teria o direito de voltar à Loja se e quando o entendesse.

 

Após aceso e prolongado debate, por maioria deliberou-se que a Loja permaneceria leal ao Grão-Mestre eleito. Quem ficou vencido, exerceu o seu direito de se afastar e se reunir aos cisionistas.
Uma parte significativa destes, mais tarde voltou – e foi como se nunca tivessem saído! E aqueles que partiram e não voltaram (ainda?), porque foram dos nossos, continuarão para sempre a ser dos nossos, porque honraram a sua palavra, porque respeitaram a Unidade e a Identidade da Loja que ajudaram a criar, a crescer e a desenvolver-se e porque, portanto, muito do que a Loja foi, algo do que é, um pouco do que será, também é deles.


Até hoje, uma das caraterísticas – talvez a principal – da nossa Loja é que nela não têm lugar disputas eleitorais quanto à sua liderança. O Primeiro Vigilante de um ano é eleito Venerável Mestre do ano seguinte, e ponto final. E o Segundo Vigilante de um ano será o Primeiro Vigilante no ano seguinte e o Venerável Mestre no subsequente, e novo ponto final! Só quando motivos de força maior o impossibilitarem se procurará uma solução alternativa, respeitando a antiguidade e o parecer dos mais antigos. Quando isso foi necessário, a solução foi tomada por consenso e assim deverá, sempre que necessário, continuar a ser.

 

A Loja Mestre Affonso Domingues é o que é porque, pura e simplesmente, nunca admitiu que no seu seio a questão da escolha da sua liderança fosse um problema ou sequer um fator de temporária desestabilização. Ao longo de trinta e dois anos, nunca tivemos uma disputa eleitoral, nunca tivemos de apanhar os cacos decorrentes de uma luta dessa natureza. Conseguimos e soubemos identificar, estabelecer e aplicar as condições necessárias e suficientes para tal. O preço de abandonar este princípio identitário seria muito elevado, seria a senda para mudar a Loja Mestre Affonso Domingues que construímos, de que gostamos e em que nos sentimos bem noutra coisa qualquer. Tão simples como isso!   

 

Não conhecemos o futuro e não podemos, portanto, garantir, que nunca mudará este princípio. Mas uma coisa podemos todos desejar: que pelo menos nos próximos trinta e dois anos assim continue a ser, que nos próximos trinta e dois anos a nossa Loja Mestre Affonso Domingues continue a ser esta nossa Loja Mestre Affonso Domingues, tal como ela é, tal como a fizemos e vamos, dia a dia, ano a ano, construindo.

 

Se o conseguirmos fazer, honramos os nossos Fundadores e todos aqueles que nos trouxeram até aqui. E daqui a trinta e dois anos, os nossos sucessores (desejavelmente incluindo alguns do que hoje aqui estão) apenas terão de renovar este compromisso por mais sessenta e quatro anos, e assim sucessivamente.

 

E assim continuaremos a construir algo que é maior do que nós, a nossa Loja Mestre Affonso Domingues!

 

Rui Bandeira

Mestre Maçom

 

Prancha lida na sessão de treze de julho de dois mil e vinte e dois da Loja Mestre Affonso Domingues

 

 

30 março 2022

AS TRÊS GRANDES LUZES DA MAÇONARIA, A MORAL E A ÉTICA

As três grande luzes da Maçonaria são o Compasso, o Esquadro e o Livro da Lei Sagrada.

 Talvez o mais conhecido dos símbolos da Maçonaria seja o que é constituído por um esquadro, com as pontas viradas para cima, e um compasso, com as pontas viradas para baixo.

 Como normalmente sucede, várias são as interpretações possíveis para estes símbolos.

 É corrente afirmar-se que o esquadro simboliza a retidão de caráter que deve ser apanágio do maçom. Retidão porque com os corpos do esquadro se podem traçar facilmente segmentos de reta e porque reto se denomina o ângulo de 90 º que facilmente se tira com tal ferramenta. Da retidão geométrica assim facilmente obtida se extrapola para a retidão moral, de caráter, a caraterística daqueles que não se "cosem por linhas tortas" e que, pelo contrário, pautam a sua vida e as suas ações pelas linhas direitas da Moral e da Ética. Esta caraterística deve ser apanágio do maçom, não especialmente por o ser, mas porque só deve ser admitido maçom quem seja homem livre e de bons costumes.

É também corrente referir-se que o compasso simboliza a vida correta, pautada pelos limites da Ética e da Moral. Ou ainda o equilíbrio. Ou a também a Justiça. Porque o compasso serve para traçar circunferência, delimitando um espaço interior de tudo o que fica do exterior dela, assim se transpõe para a noção de que a vida correta é a que se processa dentro do limite fixado pela Ética e pela Moral. Porque é imprescindível que o compasso seja manuseado com equilíbrio, a ponta de um braço bem fixada no ponto central da circunferência a traçar, mas permitindo o movimento giratório do outro braço do instrumento, o qual deve ser, porém, firmemente seguro para que não aumente ou diminua o seu ângulo em relação ao braço fixo, sob pena de transformar a pretendida circunferência numa curva de variada dimensão, torta ou oblonga, assim se transpõe para a noção de equilíbrio, equilíbrio entre apoio e movimento, entre fixação e flexibilidade, equilíbrio na adequada força a utilizar com o instrumento. Porque o círculo contido pela circunferência traçada pelo instrumento se separa de tudo o que é exterior a ela, assim se transpõe para a Justiça, que separa o certo do errado, o aceitável do censurável, enfim, o justo do injusto.

Também é muito comum a referência de que o esquadro simboliza a Matéria e o compasso o Espírito, aquele porque, traçando linhas direitas e mostrando ângulos retos, nos coloca perante o facilmente percetível e entendível, o plano, o que, sendo direito, traçando a linha reta, dita o percurso mais curto entre dois pontos, é mais claro, mais evidente, mais apreensível pelos nossos sentidos - portanto o que existe materialmente. Por outro lado, o compasso traça as curvas, desde a simples circunferência ao inacabado (será?) arco de círculo, mas também compondo formas curvas complexas, como a oval ou a elipse. É, portanto, o instrumento da subtileza, da complexidade construída, do mistério em desvendamento. Daí a sua associação ao Espírito, algo que permanece para muitos ainda misterioso, inefável, obscuro, complexo, mas simultaneamente essencial, belo, etéreo. A matéria vê-se e associa-se assim à linha direita e ao ângulo reto do esquadro. O espírito sente-se, intui-se, descobre-se e associa-se portanto ao instrumento mais complexo, ao que gera e marca as curvas, tantas vezes obscuras e escondendo o que está para além delas - o compasso.

Cada um pode - deve! - especular livremente sobre o significado que ele próprio vê nestes símbolos. O esquadro, que traça linhas direitas, paralelas ou secantes, ângulos retos e perpendiculares, pode por este ser associado à franqueza de tudo o que é direito e previsível e por aquele à determinação, ao caminho de linhas direitas, claro, visível, sem desvios. O compasso, instrumento das curvas, pode por este ser associado à subtileza, ao tato, à diplomacia, que tantas vezes ligam, compõem e harmonizam pontos de vista à primeira vista inconciliáveis, nas suas linhas direitas que se afastam ou correm paralelas, oportunamente ligadas por inesperadas curvas, oportunos círculos de ligação, improváveis ovais de conciliação; enquanto aquele, é mais sensível à separação entre o círculo interior da circunferência traçada e tudo o que lhe está exterior, prefere atentar na noção de discernimento entre um e outro dos espaços.

E não há, por definição, entendimentos corretos! Cada um adota o entendimento que ele considera, naquele momento, o mais ajustado e, por definição, é esse o correto, naquele momento, para aquela pessoa. Tanto basta!

O conjunto do esquadro e do compasso simboliza a Maçonaria, ou seja, o equilíbrio e a harmonia entre a Matéria e o Espírito, entre o estudo da ciência e a atenção às vias espirituais, entre o evidente, o científico, o que está à vista, o que é reto e claro e o que está ainda oculto ou obscuro. O esquadro é sempre figurado com os braços apontando para cima e o compasso com as pontas para baixo. Ambas as figuras se opõem, se confrontam: mas ambas as figuras oferecem à outra a maior abertura dos seus componentes e o interior do seu espaço. A oposição e o confronto não são assim um campo de batalha, mas um espaço de cooperação, de harmonização, cada um disponibilizando o seu interior à influência do outro instrumento. Assim também cada maçom se abre à influência de seus Irmãos, enquanto que ele próprio, em simultâneo, potencia, com as suas capacidades, os seus saberes, as suas descobertas, os seus ceticismos, as suas respostas, mas também as suas perguntas (quiçá mais importantes estas do que aquelas...) a modificação, a melhoria, de todos os demais.

Quanto ao Volume da Lei Sagrada, este pode ser qualquer dos Livros de qualquer das religiões que acreditem na existência de um Criador, qualquer que seja a conceção que Dele se tenha, mais ou menos interventor no Universo ou mero Princípio Criador catalisador e e definidor do Universo.

O Livro da Lei Sagrada contém em si as normas básicas da atuação e convivência humanas, referencial para a conduta do homem de bem. Em suma, simboliza o conjunto de regras que a Sociedade determina aceitáveis para que a sã convivência entre todos seja possível, ou seja, A Moral inerente à Sociedade e que todos os que a integram devem respeitar e seguir.

Nas sessões de Loja, o Compasso e o Esquadro são colocados SOBRE  o Volume da Lei Sagrada. Não porque se entenda que são mais importantes aqueles do que este, mas, pelo contrário, porque o Volume da Lei Sagrada simboliza a base Moral sobre a qual assenta a Ética de cada um.

Esta, a Ética, defini-a já como o conjunto de princípios que norteiam a determinação e utilização dos meios à nossa disposição para atingirmos os fins que nos propomos (cfr. texto in A PARTIR PEDRA: ÉTICA? ÉTICA... ÉTICA! (a-partir-pedra.blogspot.com).

 O Esquadro traça, sobre o pano de fundo da Moral, as linhas éticas que o Homem deve definir para a sua atuação. O Compasso define os limites que essas linhas devem respeitar.

O conjunto de ambos simboliza, assim, também a Ética que, tal como eles assentam no Volume da Lei Sagrada, assenta na Moral sobre que esta se constrói.

Porque a ética sem Moral pode usar esse nome, mas não é verdadeiramente Ética – ou então teríamos que aceitar como tal a “honra dos ladrões”, a dita “ética dos criminosos”. A Ética tem que necessariamente ser individualmente construída respeitando e assentando na Moral da Sociedade em que nos inserimos, pois nenhum homem é uma ilha podendo arrogar-se o direito de definir o seu conjunto de princípios fora da Moral da Sociedade em que se insere.

 As Três Grandes Luzes da Maçonaria são, assim, o conjunto de símbolos que deve guiar a atividade de aperfeiçoamento do maçom, homem livre de escolher e determinar os Princípios que o norteiam, mas sempre harmoniosamente integrado na Sociedade em que se insere.

Rui Bandeira


23 março 2022

TOLERÂNCIA E SEUS LIMITES

Em Maçonaria, o conceito de Tolerância não inclui qualquer noção de superioridade do tolerante perante o tolerado. Isto é, não se tolera a opinião ou a crença do outro porque somos boas pessoas e achamos que, devemos fazê-lo, apesar de entendermos que nós é que estamos certos e o outro é que está errado, fazendo-lhe o favor de aceitar que ele tenha opinião errada.

O conceito maçónico de Tolerância existe como corolário do princípio da Igualdade, basilar entre os maçons. Deve-se tolerar e tolera-se a opinião diferente ou divergente do outro, porque, como iguais que somos, cada um tem o direito a ter a sua opinião, como muito bem entenda tê-la. E tolera-se e deve tolerar-se a opinião diferente e divergente do outro em relação à nossa, porque não devemos ter a sobranceria de achar que nós é que somos os iluminados, tocadas pela graça divina de estarmos sempre certos.

Quando o nosso igual tem uma opinião diferente ou divergente da nossa, quatro hipóteses podem existir: ou o outro está errado e nós certos, ou somos nós que estamos errados e é o outro quem está certo, ou afinal estamos ambos errados e é outra qualquer posição que está certa, ou até podemos ambos estar certos, só que em planos, tempos ou condições diferentes.

A Tolerância não é um favor, uma concessão ou uma generosidade. A Tolerância é a simples consequência de se reconhecer que a perfeição humana não existe e, portanto, de admitir como um facto da vida que todos e cada um de nós temos os nossos defeitos, as nossas imperfeições, os nossos acertos e os nossos erros e é, por conseguinte, até mais do que imperativo ético, um ato de inteligência tolerar o outro com os seus defeitos, imperfeições e erros, pois só assim podemos esperar que os nossos sejam, por sua vez, tolerados.

Situações que por vezes são apresentadas como de Tolerância nada têm a ver com a mesma: a "tolerância" do branco em relação ao negro (ou vice-versa) não é mais do que racismo comprometido; a do homem para com a mulher (ou vice-versa), não passa de machismo (ou feminismo) mentecapto; a do cristão para com o judeu ou o muçulmano, ou do judeu para com o muçulmano ou o cristão ou a do muçulmano para com o cristão ou o judeu, mais não significam do que a tentativa de ocultar sectarismo religioso; a do rico em relação ao pobre apenas disfarça o sentimento de culpa pela sorte do conforto material ou desejo de continuar a explorar o deserdado. Porque o branco e o negro são ambos humanos e ambos têm carne e ossos e sangue vermelho e coração e cérebro. Porque homem e mulher se complementam e são mutuamente indispensáveis. Porque cristãos, judeus e muçulmanos creem no mesmo Deus. Porque o rico e o pobre só se enobrecem pelo trabalho.

Quando se fala de Tolerância, é frequente vir à baila a questão dos seus limites. Existe alguma tendência para se considerar existir algo de contraditório entre a Tolerância e a consideração de existência de limites à mesma. A meu ver, esta é uma falsa questão, que um pouco de reflexão facilmente resolve. 

Antes do mais, é preciso entender que o conceito de Tolerância se aplica a crenças, a ideias, ao pensamento e respetiva liberdade, às pessoas e sua forma, estilo e condições de vida, mas nada tem a ver com o juízo sobre atos. Cada um de nós deve tolerar, aceitar e respeitar, independentemente da sua diferença em relação a si e ao seu entendimento, a crença alheia, as ideias e o pensamento de outrem, pois a liberdade de crença e de pensamento são expressões fundamentais da dignidade humana. Cada um de nós deve tolerar, aceitar e respeitar o outro, quaisquer que sejam as diferenças que vejamos nele em relação a nós, porque o outro é essencialmente igual a mim, não ferindo essa essencial igualdade as particulares diferenças entre nós existentes. Mas não é do domínio da Tolerância o juízo sobre os atos. O juízo sobre atos efetua-se em função da moral e das regras sociais e legais vigentes.

Explicitando um pouco mais: tenho o dever de aceitar alguém que pense de forma diferente da minha, que tenha uma crença religiosa diferente da minha, uma orientação sexual diferente da minha, um estilo de vida diferente do meu. Mas já não tenho idêntico dever em relação a atos concretos desse outro que se revelem violadores da lei, da moral ou da própria noção de Tolerância. Designadamente, não tenho que tolerar manifestações de intolerância em relação a mim, às minhas crenças e convicções, tal como não só não tenho que tolerar, como não devo fazê-lo, atos criminosos, cruéis, degradantes ou simplesmente violadores das consensuais regras de comportamento social.

Temos o dever de tolerar, de aceitar, a diferença - no estilo, nas ideias, nas crenças, no aspeto ou nas condições individuais. Por outro lado, temos o direito e o dever de ajuizar, de exercer o nosso sentido crítico, relativamente a ações concretas.

Ninguém vive isolado da Sociedade e todos têm de cumprir as regras sociais que viabilizam a sã convivência de todos com todos. Consequentemente, é uma simples questão de bom senso que devemos aceitar, valorizar, integrar as diferenças. Quem é diferente, tem direito a sê-lo. Quem pensa diferente, tem o direito de assim fazer. Mas, por outro lado, o direito à diferença não legitima a atuação desconforme com as regras sociais, legais, morais, em vigor na Sociedade em causa. Ninguém pode pretender só gozar das vantagens sem suportar os inconvenientes. Quem vive em Sociedade tem o direito de exigir que esta e os demais aceitem as suas diferentes ideias, conceções, condição. Mas tem o correlativo dever de respeitar as normas sociais, legais e morais vigentes. Se o não quiser fazer, deve afastar-se para onde vigorem normas que esteja disposto a seguir.

As Sociedades evoluem e é bom que assim seja. Também por isso é inestimável e rica a diferença. Também por isso devemos aceitá-la e aceitar que quem defende ideias ou conceções ou condições diversas da norma procure convencer os demais da bondade das suas escolhas. Isso é Liberdade, isso é Democracia. Nem uma, nem outra subsistem sem a indispensável Tolerância da Diversidade. Mas precisamente por isso - afinal porque quem quer e merece ser respeitado tem o dever de respeitar - o direito de defesa das ideias e convicções, o direito a tentar convencer os demais, o direito a pregar a evolução pretendida, não se confunde com qualquer pretensão de agir como se pretende, se em contrário da lei, do consenso social, da postura moral da Sociedade em que se está inserido.

Resumindo: a Tolerância obriga a respeitar a Diversidade e a diferença; impõe a aceitação da divulgação, da busca de convencimento, mesmo da propaganda das ideias ou conceções diversas. Mas não que se aceitem condutas prevaricadoras do que está legal e socialmente vigente - enquanto o estiver. Por isso entendo que os domínios da Tolerância e do Juízo sobre os atos concretos são diferentes. As ideias, as conceções, as condições confrontam-se, debatem-se, mutuamente se influenciam, enfim interagem no domínio da Liberdade e, assim, da mútua Tolerância. Os atos, esses, necessariamente que têm de respeitar o estabelecido enquanto estabelecido estiver. Se assim não for, o que é aplicável à violação do consenso social não é a Tolerância - é a Justiça, seja sobre a forma de Justiça formal, seja enquanto censura social seja no domínio do juízo individual.

Portanto, onde tem lugar a Tolerância, esta não tem limites. Onde há limites, sejam legais, sejam de normas sociais ou morais, não se está no domínio da Tolerância, mas no domínio do tão justo quanto possível juízo concreto sobre atos concretos.

Rui Bandeira

16 março 2022

EM TEMPO DE GUERRA, A LUCIDEZ POSSÍVEL

 Todos vamos vendo as imagens. Todos nos sentimos indignados com a barbárie, com a inútil destruição, com a contabilidade, sempre crescente, do número de mortos. Todos nos emocionamos com as imagens de mulheres, idosos e crianças em fuga desesperada aos horrores da guerra que lhes bateu à porta e, sem pedir licença, lhes entrou pela vida dentro.

A primeira reação é tomar partido. A nossa simpatia vai para quem foi agredido, todos os que foram agredidos. A nossa condenação, dirigimo-la ao agressor, a todos os agressores. Logo de seguida – e muito bem! – desperta a nossa solidariedade, a busca de meios para ajudar quem sofre.

É natural, é humano, horrorizar-nos com o horror, solidarizar-nos com a vítima, condenar o agressor. É quase que instintivo fazê-lo. As nossas emoções impelem-nos a tal. Qual pintura impressionista, retemos a noção geral de que os agredidos, a Ucrânia e a população ucraniana, são as vítimas e que os russos são insensíveis agressores. De um lado os bons, do outro os maus.

Mas a nossa Razão, sendo influenciada pela nossa Emoção, deve impelir-nos a ir para além dela. Se tivermos o cuidado de verificar alguns dados, saberemos que, segundo o censo ucraniano de 2001, mais de oito milhões de residentes na Ucrânia (um pouco mais de 17 % da população total) são russos. É certo que no Dombass, a região mais a leste da Ucrânia, vivem – ou viviam? – cerca de quatro milhões e meio de russos e que esta região não é atacada pelas tropas às ordens de Putin. Mas ainda sobram cerca de três milhões e meio de russos que vivem – ou viviam? – no resto da Ucrânia e que, por isso, sofrem também bombardeamentos, também têm que se abrigar no subsolo ou onde puderem, também estão tão cercados ou atacados como o resto dos seus concidadãos. Um morteiro ou míssil russo, ao explodir, tanto pode matar ucranianos como russos.

Não obstante, neste confronto entre Vladimir Putin e Volodymyr Zelenski, naturalmente que a nossa simpatia vai para este, a nossa condenação para aquele.

Mas temos que ter em atenção que muitos mais Volodymyr há na Ucrânia e muitos mais Vladimir há na Rússia. E que, se é certo que muitos desses Volodymyr são heróis como o seu Presidente que resiste, outros não o serão tanto assim e seguramente que também alguns haverá que não são flor que se cheire… E, no outro lado, nem todos são filhos de Putin!

Isto é facilmente entendível pela nossa Razão, mas dificilmente aceite pela nossa Emoção. Mas, em tempos de conflito, se temos de atender à nossa Emoção, temos que deixar que continue a ser a nossa Razão a sobrepor-se, a ter a última palavra. Senão, nós próprios cometemos injustiças que, para além de o serem, são sobretudo estúpidas!

Nos últimos dias, vimos e ouvimos notícias de que, cá pelo burgo, nas nossas escolas, crianças russas estavam a ser atacadas, injuriadas, agredidas, só por serem… russas. Mas que culpa têm as crianças de terem nascido num lugar e não em outro, de terem pais de uma nacionalidade ou grupo étnico e não de outro?

Este exemplo, infelizmente real, mostra-nos que não podemos, não devemos, ver o Mundo a preto e branco, os maus de um lado, os bons do outro. Nem todos os russos são agressores (aliás, suspeito, que muitos são, em primeiro lugar, oprimidos…), nem, seguramente, todos os ucranianos gostaríamos de ver casados com as nossas filhas…

Solidariedade e auxílio ao Povo Ucraniano, sim! São os agredidos, batem-se heroicamente em defesa da sua terra, das suas casas, das suas famílias, e merecem todo o apoio que lhes pudermos dar.

Mas tenhamos a lucidez de entender que, do outro lado, não podemos generalizar e classificar todos como os maus, os agressores, os violentos. Do outro lado, também há já milhares de detidos por se manifestarem contra a agressão à Ucrânia. E certamente que muitos combatem só porque são obrigados a fazê-lo.

Nesta guerra, não se trata de um Povo atacar outro. Trata-se um Poder Político atacar outro, indiferente ao sofrimento que causa aos Povos, o do outro e o dele próprio.

Sanções ao país agressor, sim, mas com a noção de que o sofrimento que se inflige ao povo do país agressor não se destina a punir, a castigar, esse povo, mas sim a induzir a cessação da agressão, talvez até por revolta desse povo contra o verdadeiro agressor.

Solidariedade e apoio aos agredidos, sim. Condenação ao agressor, também sim. Mas não deixemos de identificar bem quem é o agressor e quem apenas é utilizado, mandado, quiçá obrigado, por ele.

Esta distinção entre quem na realidade agride, manda agredir e obriga a agredir (e, não sejamos ingénuos, não é só Putin, é ele e toda uma clique que se assenhoreou do poder, para benefício próprio e não do povo que governam) e quem apenas obedece porque tem de obedecer, porque a revolta só é possível quando estão reunidas as condições para que ela possa emergir, é essencial, em termos de futuro.

Porque, por muito difícil, por muito desesperada, por muito horrível que esteja a situação atual, há algo que não podemos olvidar: tal como à Tempestade sucede a Bonança, depois da Guerra há de vir a Paz.

Em tempos de guerra, temos o dever de ajudar quem sofre, quem é agredido, mas não podemos perder de vista que há que preservar as condições para que, o mais brevemente possível, se alcance a Paz. A guerra pode ser desencadeada, pode ser mantida por um qualquer detentor do Poder. Mas a Paz, essa, só é possível entre Povos. Muitas feridas haverá que cicatrizar para que, da mera deposição das armas, se chegue à verdadeira Paz. Para que tal se consiga, temos que ter e transmitir a noção de que os Povos não são inimigos, que o inimigo é quem desencadeia, propicia e mantém a guerra. Porque os Povos, de um e do outro lado, o que anseiam é pela Paz.

Portanto, condenação de Putin e dos filhos de Putin que constituem a clique que lançou e mantém esta barbárie, auxílio ao Povo Ucraniano, mas também solidariedade com quem, de um e do outro lado, quer a Paz e é obrigado, por vontade de alguns, a suportar a guerra.

Solidariedade, principalmente, com todas as crianças, de um e do outro país – e com as crianças russas em Portugal -, que não têm culpa nenhuma dos desvarios dos detentores do Poder.

 Rui Bandeira

09 março 2022

Caraterísticas da Loja Mestre Affonso Domingues, n.º 5

 A Loja Mestre Affonso Domingues, n.º 5, foi fundada em 30 de junho de 1990, no âmbito do Distrito de Portugal da Grande Loge Nationale Française. É uma das cinco Lojas fundadoras da Grande Loja Regular de Portugal, hoje Grande Loja Legal de Portugal / Grande Loja Regular de Portugal. Não é melhor nem pior do que as demais Lojas da Obediência. Mas indubitavelmente que, ao longo dos mais de trinta anos do seu funcionamento criou uma cultura própria, que lhe confere individualidade.

Mais do que descrever o que fez no passado (o passado já passou…), mais do que mencionar o seu estado presente (o presente de agora não tarda nada e já é passado…), mais do que expor os seus projetos para o futuro (o futuro ainda não chegou…), julga-se útil referir (algum)as caraterísticas que compõem a individualidade da Loja Mestre Affonso Domingues, n.º 5.

1)     Na Loja nunca houve, não há e desejavelmente nunca haverá pugnas eleitorais.

Na Loja Mestre Affonso Domingues, é eleito Venerável Mestre o Primeiro Vigilante do ano anterior, e ponto final! E é eleito Tesoureiro o obreiro que o candidato a Venerável Mestre propõe para tal, parágrafo!

Nesta Loja não se perde tempo, nem se gastam energias com pugnas eleitorais. Temos mais e melhor que fazer! Com este princípio identitário não se perde tempo em lutas estéreis, não se formam artificialmente grupos, não se estabelecem quezílias. Acordos e desacordos estabelecem-se e discutem-se em relação a opções a tomar, a tarefas a realizar, a projetos a desenvolver. Isso, sim, debate-se o tempo que for preciso até se nos tornar evidente qual o melhor (às vezes, qual o menos mau...) caminho a seguir. Porque não perdemos tempo em questiúnculas de (ilusório!) poder, podemos mais utilmente gastá-lo a debater o que vamos e como vamos fazer.

2)    Cada Venerável Mestre é eleito para exercer um ano de mandato e depois dá lugar a outro.

O Regulamento Interno da Loja prevê a possibilidade de uma (única) reeleição para um segundo mandato, por maioria qualificada. Mas esta é uma possibilidade ali colocada apenas em face da eventualidade de sobrevir um "dia de chuva" tal que nos obrigue a recorrer ao guarda-chuva de uma excecional reeleição. O exercício do ofício de Venerável Mestre por um ano e basta tem duas evidentes vantagens: todos os obreiros interessados e intervenientes na Loja exercem, a seu tempo, o ofício de Venerável Mestre; não se sacrifica demasiado ninguém, pois, como todos os que se sentaram na Cadeira de Salomão sabem, exercer este ofício permite ao seu titular duas alegrias: a primeira quando é instalado para exercer o ofício, a segunda quando (finalmente, ao fim de um loooongo ano...) vê instalado o seu sucessor e é aliviado da responsabilidade de dirigir a Loja.

O Segundo Vigilante de um ano é o Primeiro Vigilante do ano seguinte.

 Este princípio identitário é crucial, pois impede que se criem cliques de direção da Loja, impedindo o Venerável Mestre recém-eleito de ser ele a escolher o seu sucessor. Com efeito, o Primeiro Vigilante é (ver o primeiro princípio identitário acima) o sucessor natural do Venerável Mestre e, consequentemente, não deve ser por ele escolhido, ao contrário da esmagadora maioria dos demais Oficiais da Loja. O Venerável Mestre tem o dever de designar para Primeiro Vigilante o Segundo Vigilante do ano anterior, que foi escolhido para essa função pelo seu antecessor, com a expectativa do próprio, do Venerável Mestre que o nomeou e de toda a Loja, de ser no ano seguinte Primeiro Vigilante e, no subsequente, Venerável Mestre. Assim não proceder, para além de ser uma condenável forma de se arrogar o direito de escolher o seu sucessor, seria uma tremenda falta de respeito pelo seu antecessor, uma forma de lhe dizer meu caro, foste um palerma, fizeste uma má escolha para Segundo Vigilante, eu é que vou ser o Cavaleiro Branco que vai emendar o teu erro e escolher o homem certo para o lugar certo... O incumprimento deste princípio identitário da Loja abriria uma Caixa de Pandora de consequências imprevisíveis, correndo-se o risco de deitar a perder tudo o que a Loja foi e construiu ao longo de mais de trinta anos.

Todos devem saber fazer tudo.

  Por rotina, todos os Mestres da Loja rodam no exercício de todos os ofícios. Sempre que possível, reservam-se para os Mestres Instalados, para além dos Ofícios de Ex-Venerável e de Guarda Interno (o Ex-Venerável do ano anterior), os Ofícios de Orador e de Hospitaleiro, dadas as suas especiais caraterísticas. Os demais ofícios, sempre que possível, são assegurados por Mestres que ainda não passaram pela Cadeira de Salomão. Ao rodar todos os Mestres por (quase) todos os Ofícios, assegura-se que quando o Obreiro chega à Cadeira de Salomão conhece perfeitamente o funcionamento de toda a Loja e está, assim, apto a dirigi-la.

Serviço é serviço, copos são copos.

 Antes da sessão, brinca-se e convive-se. Depois da sessão, idem. Desde o momento em que o Venerável Mestre bate pela primeira vez com o malhete até ao momento em que são dados por findos os trabalhos, trabalha-se! Sobretudo, procura-se executar o ritual sempre o melhor possível, corrigindo em cada sessão eventuais erros cometidos em sessões anteriores.

A espontaneidade e o humor nunca fizeram mal a ninguém.

Entre o ritual de abertura e o ritual de encerramento, e quando não se estão a executar outros rituais, o serviço é serviço, mas não tem de ser macambúzio. Se houver uma nota de humor, todos riem com gosto! E logo se retoma o trabalho… Mas atenção que o malhete do Venerável Mestre é que pontua os trabalhos e, sempre que o entenda necessário, lá está o Orador para moderar algum ocasional excesso… Estamos entre Irmãos, a espontaneidade temperada pela disciplina faz maravilhas pela coesão do grupo!

 Os mais novos são para integrar o melhor possível

 Cada Aprendiz só o é porque foi cooptado para integrar o Quadro da Loja. Cada Aprendiz é um Venerável Mestre potencial. Cada Companheiro é um elemento em transição para Mestre. Toda a Loja procura integrar os elementos mais novos, não só através da sua aquisição dos ensinamentos próprios dos respetivos graus, mas sobretudo na noção e na prática de que todos estão ali para se aperfeiçoarem, para cada um de nós ser melhor hoje do que ontem e pior do que amanhã. O trabalho faz-se com o grupo e os seus resultados são apresentados na Loja e em Loja.

Não há pressas, o tempo é indispensável; não há baldas, o trabalho é imprescindível

 Os interstícios são para cumprir, porque o tempo é um fator indispensável à boa integração no grupo. Ninguém é aumentado de salário sem elaborar e apresentar a sua prancha de proficiência em Loja, porque deve demonstrar a sua evolução aos seus pares.

Eu não sou mais do que tu, tu não és mais do que eu, tu e eu somos iguais.

 O grupo influencia o indivíduo o indivíduo influencia o grupo. Seja Aprendiz, Companheiro, Mestre ou Mestre Instalado. Basicamente todos somos iguais, todos temos de melhorar e todos estamos em processo de aperfeiçoamento. O Mestre guia o Aprendiz e auxilia o Companheiro, mas também aprende com o Aprendiz e beneficia da ajuda do Companheiro. Aprendiz, Companheiro e Mestre são necessárias fases de evolução e aprendizagem, mas todos os que nelas estão são basicamente iguais e como tal nos vemos uns aos outros.

Tudo se debate; mas quando o Venerável Mestre decidir, está decidido.

Tudo se debate, com exceção de política e religião. O debate pode e deve ser vivo. Não há mal nenhum em que se revelem divergências, diferenças de pontos de vista. Tal é necessário para que seguidamente se construam convergências e consensos. No debate, no fundo todos agem como conselheiros do Venerável Mestre. Mas a maioria não tem, necessariamente, razão. O Venerável Mestre pode decidir em consonância com a maioria, mas normalmente a melhor decisão é a que resulta do entendimento da maioria temperado com os contributos da ocasional minoria. E, uma vez tomada a decisão pelo Venerável Mestre, está decidido. Acaba o debate e passa-se adiante…

Ninguém pode obstaculizar à decisão do Venerável Mestre, mas ninguém é obrigado a cumpri-la.

A Maçonaria é essencialmente, voluntária, mas todos jurámos obediência as decisões do Venerável Mestre. Por outro lado, todos somos iguais e ninguém deve ser compelido a fazer algo contra a sua consciência. Do confronto destes dois princípios, há muito que na Loja é consensual que ninguém tem o direito de obstaculizar ao cumprimento da decisão do Venerável Mestre, mas ninguém é obrigado a executá-la, contra a sua consciência.

Eu e tu podemos estar em desacordo, mas que ninguém de fora ouse meter o bedelho.

 O hábito de (quase) tudo debater necessariamente que pode gerar diferenças de opinião, frequentemente conduz a debates acesos. Mas são debates que ocorrem entre nós e diferenças de opinião que resolvemos todos nós. Que ninguém de fora alguma vez tenha a infeliz ideia de meter o nariz onde não é chamado e atacar algum de nós! Os poucos que tiveram a ousadia de o fazer, viram, ao vivo e a cores, como toda uma Loja passa do modo debate para o modo muro de betão e como, se alguém se mete com um de nós, leva com todos!

Venham às nossas sessões, que nós gostamos de ser visitados.

Os visitantes na nossa Loja são sempre bem-vindos! Saudamos com sincera alegria a sua presença e procuramos dar-lhes o melhor tratamento possível: tratá-los como da casa! Por isso, não se admirem se nós discutirmos o que tivermos que discutir, pela forma que houver que discutir, na vossa presença. O visitante é como se fosse da casa, logo, não temos nada a esconder-lhe. Mais: se o visitante também quiser participar na discussão, a sua opinião é bem-vinda e apreciada. Só pedimos que tenha  cuidado com a nossa caraterística anterior… Ah! E os nossos visitantes são sempre também muito bem-vindos aos nossos ágapes, onde – não tenham dúvidas! – terão também sempre um tratamento rigorosamente igual aos da casa. Até no pagamento do custo do ágape…

A nossa Loja denomina-se MESTRE Affonso Domingues

Por favor não digam que a nossa Loja é a Affonso Domingues. Nós sabemos que, quando assim dizem, não o fazem por mal, mas o nome da nossa Loja é MESTRE Affonso Domingues. É um favor que nos fazem se não esquecerem uma parte do nosso nome. E, já agora, quando o escreverem, não esqueçam que o Affonso do nosso nome tem dois ff

Uma vez da Mestre Affonso Domingues, sempre da Mestre Affonso Domingues

Quem entrou na Loja, tornou-se um de nós. Todos aqueles que saíram, quantas vezes para formar outras Lojas ou colaborar na sua formação, fizeram-no no uso da sua liberdade individual, mas sempre sem azedumes nem qualquer espécie de mal-entendidos. Alguns já voltaram e foi como se nunca tivessem saído. A maior parte, quando está connosco, sente-se e é sempre tido e tratado como um de nós, que continua e continuará a ser. A nossa Loja é um espaço de formação, que desejamos marque quem por cá passa, esteja onde estiver. Todos sabem que quem foi um dia um de nós, é e será sempre um dos nossos.

E, neste particular, também os que já franquearam o umbral do Oriente Eterno continuam a ser um dos nossos. Por isso, este texto é dedicado ao nosso muito querido e recordado Luís Rosa Dias, mas também ao Rui Clemente Lelé, ao Alexis Botkine, ao João Damião Pinheiro, ao Carlos Antero Ferreira, ao Luís Prats, ao Jorge Pereira de Almeida, ao Salomão Amram, ao Jorge Silveira, ao Paulo Guilherme d’Eça Leal, ao José Luís Moita de Macedo, ao André Franco de Sousa, ao António Cunha Coutinho, ao Enrique Fugasot, ao José Manuel Severino e ao Eduardo Gonçalves.

 Estamos certos que, lá no assento etéreo onde subiram estão a manter viva e em bom funcionamento a versão do Oriente Eterno da nossa Loja Mestre Affonso Domingues, a que, em devido tempo, nós nos juntaremos.

 Porque uma vez da Mestre Affonso Domingues, sempre da Mestre Affonso Domingues. Aqui e no Oriente Eterno!

Rui Bandeira

13 outubro 2021

O VÍCIO

 


Deixamos, finalmente, “os confinamentos” (!!!).

Não convém embandeirar demasiadamente porque, aprendi em criança, “cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém…” e na verdade os portugueses “desconfinaram” mas o CoronaVírus não. Ou pelo menos eu estou convencido que “ele” continua por aí. É, de resto, a opinião expressa pelos técnicos de saúde que nestes tempos de pandemia pululam as televisões, rádios, jornais,…

Alguma coisa pode ser aproveitada nestes tempos de ócio pandémico e não havendo nada para fazer ocupei alguns momentos a refletir sobre a vida maçónica, em particular no que se refere à RLMAD.

Isto de refletir é, obviamente, uma boa ocupação quando não há mais nada para fazer.

Estamos claramente em tempo de “vacas magras” (alguma vez não estivemos ?).

Empresas (de todas as dimensões) a ressentirem-se da paragem da economia mundial, muitas a fecharem portas e a desaparecerem do mercado, desemprego a aumentar inevitavelmente, famílias inteiras em gravíssimas dificuldades e a esperança em melhores dias, sendo a última coisa a morrer (como de costume), mantém-se muito ténue.

Direi que é maior a desconfiança e o medo do que a esperança em recuperação rápida.

Esta reflexão trouxe-me para os meses do calendário que, para muitos, ficam cada vez “mais compridos” enquanto os vencimentos ficam cada vez mais curtos, obrigando a prodígios de imaginação para a manutenção do dia a dia das famílias. A dificuldade com as obrigações pecuniárias mensais foram em muitos casos disfarçadas, durante estes quase 2 anos de “fechamento”, por efeito das moratórias que a banca promoveu com o apoio estatal. Só que este sistema acabou ou está em vias de acabar com o regresso das prestações a terem de ser cumpridas sob pena de sofrerem as penas previstas nos contratos acordados na época em que ninguém podia prever a pandemia, nem as dificuldades que arrastou. 

Estas dificuldades são evidentemente generalizadas tocando também, e em muitos casos fortemente, alguns Irmãos.

Sabe-se que a admissão na nossa obediência implica uma “contratualização” com o cumprimento de um conjunto de regras comportamentais, morais e éticas, às quais se juntam outras de carater pecuniário.

Nada a obstar em termos regulamentares. O candidato, enquanto candidato, fica a conhecer as regras que irão balizar a sua existência maçónica se admitido e quando admitido. Mas a vida dá muitas voltas, como bem se constata, e nenhum de nós está livre de ser apanhado por uma qualquer dessas voltas que lhe altere a situação financeira deixando-o em dificuldades no cumprimentos dos seus deveres materiais. Todos nós sabemos que as propaladas vantagens de toda a ordem que a Maçonaria proporciona aos seus membros são uma ficção e os Maçons estão tão sujeitos às condições do mercado de trabalho como qualquer outro cidadão. E se entre os Maçons há quem viva com o conforto suficiente para não sentir, ou sentir muito pouco, estas dificuldades, também há os que as sentem com todo o peso do sofrimento arrastado pelo desemprego e/ou pela redução dos seus ganhos mensais.

Há pois Irmãos em dificuldade e a há que ter em atenção o que se passa com os mais vulneráveis. É um trabalho que compete às Lojas e em particular ao Irmão Hospitaleiro, inteirar-se do que acontece com cada membro da loja, sentir os sinais de dificuldade e movimentar os meios práticos para amenizar essas situações.

“Quem não tem dinheiro não tem vícios” é provérbio antigo e até sou capaz de aceitar esta “boca” com alguma razoabilidade.

Vício (do termo latino "vitium", que significa "falha" ou "defeito") é um hábito repetitivo que degenera ou causa algum prejuízo ao viciado e aos que com ele convivem.

Fui buscar esta definição à Wikipédia. Não é grande “coisa”, mas serve para o efeito que pretendo neste momento.

No mundo da Maçonaria os integrantes são escolhidos e reconhecidos como Maçons por quem já é Maçon. Digamos que a integração na Maçonaria, sendo um ato voluntário individual não o é só.

É também, e muito, a vontade de quem já ganhou o reconhecimento de Maçon e reconhece agora, também, naquele outro, as qualidades humanas necessárias para integrar o conjunto dos seus Irmãos.

A responsabilidade do cumprimento dos deveres maçónicos não é exclusivamente individual, é também responsabilidade de quem convidou, desafiou, reconheceu o “outro” para integração na Ordem Maçónica.

E esta responsabilidade deve ser verdadeiramente assumida por toda a Loja, em Irmandade (é esse um dos seus deveres) e em particular pelo seu Padrinho. Por isso, e para isso há “Padrinhos”, na Maçonaria tal como na vida civil corrente, no registo do nome do recém-nascido, no casamento, no batizado… Sempre alguém que se co-responsabiliza pelo bom resultado do ato que é celebrado.

Ora bem, misturar a integração Maçónica com os “vícios” é, pelo menos, leviano !

Tenho para mim que seria muito bom que as causas, os princípios da Maçonaria, se tornassem verdadeiros vícios para todos, mesmo para os não Maçons, daqueles vícios que se agarram à pele, que se integram no sangue correndo pelas veias enchendo o coração e o cérebro. É minha convicção que a Humanidade teria muito a ganhar.

Mas “quem não tem dinheiro não tem vícios” aplicado à Maçonaria, não !

A Maçonaria não é um vício, tal como não é, não pode ser, um degrau de promoção individual, seja ela social ou financeira. Ou ambas…

JPSetúbal